quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

olhando... Rio Tsiribihina, Madagáscar



De Quem é o Olhar

De quem é o olhar 
Que espreita por meus olhos? 
Quando penso que vejo, 
Quem continua vendo 
Enquanto estou pensando? 
Por que caminhos seguem, 
Não os meus tristes passos, 
Mas a realidade 
De eu ter passos comigo ? 

Às vezes, na penumbra 
Do meu quarto, quando eu 
Por mim próprio mesmo 
Em alma mal existo, 

Toma um outro sentido 
Em mim o Universo — 
É uma nódoa esbatida 
De eu ser consciente sobre 
Minha idéia das coisas. 

Se acenderem as velas 
E não houver apenas 
A vaga luz de fora — 
Não sei que candeeiro 
Aceso onde na rua — 
Terei foscos desejos 
De nunca haver mais nada 
No Universo e na Vida 
De que o obscuro momento 
Que é minha vida agora! 

Um momento afluente 
Dum rio sempre a ir 
Esquecer-se de ser, 
Espaço misterioso 
Entre espaços desertos 
Cujo sentido é nulo 
E sem ser nada a nada. 
E assim a hora passa 
Metafisicamente. 

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

praia de cortegaça. Passei o Dia Ouvindo o que o Mar Dizia



Passei o Dia Ouvindo o que o Mar Dizia

Eu hontem passei o dia 
Ouvindo o que o mar dizia. 

Chorámos, rimos, cantámos. 

Fallou-me do seu destino, 
Do seu fado... 

Depois, para se alegrar, 
Ergueu-se, e bailando, e rindo, 
Poz-se a cantar 
Um canto molhádo e lindo. 

O seu halito perfuma, 
E o seu perfume faz mal! 

Deserto de aguas sem fim. 

Ó sepultura da minha raça 
Quando me guardas a mim?... 

Elle afastou-se calado; 
Eu afastei-me mais triste, 
Mais doente, mais cansado... 

Ao longe o Sol na agonia 
De rôxo as aguas tingia. 

«Voz do mar, mysteriosa; 
Voz do amôr e da verdade! 
- Ó voz moribunda e dôce 
Da minha grande Saudade! 
Voz amarga de quem fica, 
Trémula voz de quem parte...» 
. . . . . . . . . . . . . . . . 

E os poetas a cantar 
São echos da voz do mar! 

António Botto, in 'Canções'